UM DISCO INTEIRO SOBRE A MORTE
David
Bowie, um dos maiores nomes da música mundial, morreu no dia 10 de janeiro
de 2016, dois dias depois de completar 69 anos. A perda foi muito sentida pelos
fãs porque ninguém sabia que ele estava com câncer já havia um ano e meio.
Aliás, praticamente ninguém sabia mesmo, com exceção de pouquíssimos amigos e
parentes próximos. Agravou este sentimento o fato de ele ter acabado de lançar,
no dia do seu aniversário mesmo, seu último álbum, Blackstar, também conhecido pelo símbolo ★. E foi aí que descobrimos do que se
tratava o álbum.
Mas eu acho que essa história começa em 2004, quando sua tourné mundial do álbum Reality (2003) foi bruscamente interrompida porque o cantor teve um ataque cardíaco no palco. A tourné não foi retomada e pouco se ouviu falar de David Bowie desde então. Consta que Bowie teve, até sua morte, mais seis ataques cardíacos, ou seja, já estava com a saúde debilitada e provavelmente impossibilitado de fazer shows, com exceção de algumas participações em eventos, séries e programas de TV. Em 2013, portanto dez anos depois de Reality, Bowie quebrou sua ausência discográfica lançando o álbum The Next Day, sobre cuja capa eu escrevi um pouquinho aqui. Muitos fãs comentaram que, apesar de ser um álbum bom e bem acabado, não era digno de ser o último álbum de um artista genial que parecia se aposentar.
Pouca gente
ficou sabendo, mas, no ano seguinte, Bowie lançou um single espetacular chamado
Sue (Or in a Season of Crime), cujo
lado B trazia ‘Tis a Pity She Was a Whore.
Agora sim Bowie apresentava algo espetacular. O single fora produzido por David
Bowie e Tony Visconti e contava com arranjos e execução de Maria Schneider, uma
compositora e chef d’orchestre de
jazz americana. As duas faixas, longas, estranhas e muito elaboradas, com
arranjos complicados, sofisticados e “cheios”, traziam um David Bowie tão bom
quanto o de Diamond Dogs, seu álbum
de 1974. As duas gravações também foram incluídas como faixas inéditas na
coletânea Nothing Has Changed.
Dois dias depois, eu acordei e li no
Twitter que David Bowie havia
falecido em paz, de câncer, em casa e cercado da família. Um choque. E aí caiu
a ficha de todo mundo. Lazarus, e
possivelmente o álbum inteiro, era sobre o processo de sua morte. ★ possui
apenas 7 faixas, sendo duas as já lançadas e comentadas aqui Sue e Tis a Pity She Was a Whore, porém em gravações novas e com arranjos
diferentes. Blackstar e Lazarus já eram conhecidas, sendo esta
última a mais claramente dedicada a falar da morte do seu compositor. Completam
o disco Girl Loves Me, praticamente
indecifrável com sua linguagem baseada na língua futurista do livro Clockwork Orange, conhecido nosso como a
origem do filme Laranja Mecânica, Dollar Days, em que cita a viagem que
fez à Inglaterra com a esposa Iman para visitar as suas paisagens naturais, e a
dolorosa I Can’t Give Everything Away,
que fecha o disco com Bowie repetindo à exaustão a frase eu não posso abrir mão de tudo. Terrível. E lindo, claro.
Três outtakes seriam ainda lançados
postumamente: No Plan, Killing a Little Time, e When I Met You, faixas gravadas junto
com o álbum ★, porém deixadas de
fora. O lançamento dessas faixas teve dois “lugares”: o lado E do álbum Lazarus, álbum com as gravações do musical
escrito por Bowie, e um EP intitulado No
Plan. O curioso é que nos dois vinis o lado “de trás” (no caso do álbum Lazarus o lado F e no caso do EP No Plan o lado B) são vazios. Não há
nada gravado lá, é completamente liso, coisa que eu nunca havia visto em vinil
nenhum, provavelmente simbolizando a ausência do artista. Muito triste mesmo,
apesar de artisticamente sublime.
E foi assim,
com essa enxurrada de presentaços aos fãs, que David Bowie terminou seus dias
aqui na existência. Faz tempo que sou fã, mas às vezes confesso que Bowie me
parecia um pouco (às vezes muito) canastrão ou “marketeiro”, porém um canastrão
“marketeiro” com cacife para lançar álbuns icônicos como o já citado Diamond Dogs ou mesmo o perturbador 1.Outside. ★
veio para provar que Bowie podia ser o que fosse, mas era, acima de tudo, um
artista estupendo, capaz de transformar a maior dor que um ser humano pode
sentir, a dor da consciência da morte que se aproxima, em uma obra de arte
irretocável. Só um grande artista seria capaz de tal feito. Mais ninguém.
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