TIRO DE MISERICÓRDIA

 


            Tiro de Misericórdia, de João Bosco, é uma grande obra-prima da indústria discográfica brasileira. Lançado em 1977, todas as canções são de autoria de João Bosco (música) e Aldir Blanc (letra), seu parceiro mais frequente, letrista de clássicos da dupla como Bala com BalaO Mestre-sala dos MaresDois pra Lá, Dois pra Cá, De Frente pro CrimeKid CavaquinhoIncompatibilidade de GêniosO Ronco da CuícaTransversal do TempoCorsário e O Bêbado e o Equilibrista.

Pra mim, esse álbum soa como uma história com começo, meio e fim. Não literalmente, claro, mas estruturalmente. Isso fica claro na ordem das canções, especialmente na primeira e na última. O disco começa com Gênesis (Parto) e termina com a morte em Tiro de Misericórdia. Não é como se fosse um personagem só, afinal na última faixa o menino morre aos 13, não tendo tido tempo para viver as outras canções do disco. Porém, se considerássemos o disco mesmo como a história do mesmo personagem, na primeira canção ele já nasce obviamente em condições bem controversas. Afinal, quando ele nasceu foi no sufoco, tinha uma cabra, um burro e um louco (...) sacaram o berro, meteram faca, ergueram ferro etc. A religião também denuncia a situação de periferia excluída: Exu falou ninguém se mete. Aliás, a estrutura do samba é de alternância entre um “sambão” de breque e um batuque de candomblé.

            Na segunda faixa, nosso personagem aprende a se virar na vida (o jogo), no pagode de boteco O Jogador, para logo em seguida levar a patada do amor no blues Falso Brilhante. Uma curiosidade dessa faixa é que ela estava no show de mesmo nome da Elis, de 1976, e esse também é o título do álbum que ele originou, apesar de a faixa mesmo não constar do disco. No samba-canção Tempos do Onça e da Fera, as decepções da vida começam a aparecer quando o eu-lírico associa a morte do avô com a situação decadente do país: “o avô morreu / mudou Vila Isabel ou mudei eu? / Brasil...”. Em Sinal de Caim, um choro, nosso herói antevê seu fim: “já vi esse filme – que saco! – eu morro no fim”. Pra tentar fugir da sina, Vaso Ruim Não Quebra, o dueto com Cristina, irmã de Chico Buarque, em que os dois interpretam os personagens Romão e Laurinha. Para não morrer de barrigas em greve (fome), vale de tudo na esperteza, incluindo a mão-leve (gíria para roubo). Afinal, quando o pastor late forte, o bassê faz piu-piu.

A história continua do lado B, que começa com a sensacional Plataforma, mas aí eu vou deixar para vocês a decifrarem (ou inventarem, que foi o que eu fiz até aqui). Afinal, uma obra de arte, ao encontrar seu público, deixa de pertencer ao autor e passa a ser uma criação de cada um. No entanto, é preciso dizer ainda que Tiro de Misericórdia é um grande epílogo. Nele, Aldir arrasa na letra sobre o menino que cresceu na periferia protegido por todos os santos africanos. No entanto, “era muita matraca pra pouco berro” e nenhum corpo é fechado o suficiente para resistir a cem tiros. “Morreu feito um cachorro e gritou feito um porco, depois de pular igual a macaco”. E a canção termina transformando essa morte zoológica em um palpite para o jogo do bicho. A excelente gravação ao vivo, de Elza Soares, do programa Chico & Caetano, dá a dimensão exata do drama. Gênia.

Se Tiro de Misericórdia não é o melhor álbum de João Bosco, é um forte candidato. João e Aldir, na composição, definitivamente nasceram um para o outro. Os arranjos, do maestro Darcy de Paulo, são grandiosos, como era comum nos bons discos dos anos 1970, incluindo muitos músicos e uma orquestra de cordas, além, é claro, do genial e inconfundível violão do João. Quem não conhece, conheça. Quem não ouviu, ouça. Quem não tem, tenha.



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