MARIA


            Segundo o Wikipédia, o álbum Maria, lançado em 1988 por Maria Bethânia, e que traz na capa e no conteúdo uma homenagem aos 100 anos da abolição da escravatura no Brasil, foi mal recebido pela crítica por ser muito pretensioso. Na minha opinião, essa recepção crítica nos diz muito mais sobre a qualidade da nossa imprensa do que sobre o disco em si. O disco não é pretensioso, ele é foda. Forte candidato a melhor disco de Bethânia.

            O álbum começa com Bethânia cantando à capella que a terra tremeu. E aí entra o grupo vocal sul-africano Ladysmith Black Mambazo, lindamente criando a atmosfera e a cama harmônica sobre a qual Bethânia canta palavras fortes sobre o mundo que Olorum nos deu. Olorum é o deus criador de tudo, do universo aos orixás, associado pelo nosso sincretismo religioso ao próprio Deus. A faixa é, na verdade, um amálgama de duas composições: Ofá, de um compositor chamado Sacramento, e A Terra Tremeu, de Roberto Mendes e J. Velloso. Em outras palavras, o álbum já começa muito forte, com muito simbolismo e com um arranjo incrível do Ladysmith (que, apesar do nome, é composto exclusivamente por homens). Essa força e essa qualidade técnica na execução foram erroneamente confundidas com pretensão pela crítica musical brasileira. Estava na hora de os nossos jornalistas – especialmente críticos de música – aprenderem que não é pretensão quando o resultado é incrível porque os executantes são foda.         

    Aí vem a incrível Recado Falado, do não menos incrível compositor e cantor pernambucano Alceu Valença. Haverá sempre sempre entre nós esse digo não digo? é a pergunta que inicia a canção, arranjada já pelo maestro que acompanharia a carreira de Bethânia por anos afim: Jaime Alem. A faixa também conta com a percussão dos geniais Djalma Corrêa e Carlinhos Brown, artistas que dispensam apresentações, e a letra, linda, discorre sobre questões mal resolvidas em um relacionamento. Is de ilusões e tês de tesão infinito.

            Apesar da crítica irresponsável e ressentida, já que a própria imprensa brasileira não tem nem o prestígio nem a qualidade que a música brasileira tem, o disco fez muito sucesso. E um dos sucessos do disco é a faixa seguinte: Verdades e Mentiras, de Jaime Alem. O arranjo também é de Alem e os músicos incluem o próprio Alem e o cellista Jacques Morelembaum. A letra, uma ode ao ser amado, apresenta alguns dos versos mais bonitos da MPB: Quando ele vem com a calma de um deus, os olhos de uma fera, os braços de um ateu, é tão bonito...                

    O disco continua incrível com Mulheres do Brasil, da também cantora, compositora e violonista Joyce. A faixa, como fica claro no título, é uma ode corajosa às mulheres, da mítica Eva às prostitutas. Curiosamente, a ficha técnica desta faixa, um samba delicioso em estilo crescendo, só credita os percussionistas, entre eles o genial Wilson das Neves nos tamborins. Desconfio que o violão que pode ser ouvido na faixa tenha sido tocado por Jaime Alem ou pela própria Joyce.

            O lado A termina lindo e misterioso como começou, mas agora com a voz grave e inconfundível da atriz e cantora francesa Jeanne Moreau declamando em francês o Poema dos Olhos da Amada, de Vinícius de Moraes. A gravação segue com Bethânia cantando o poema com a música que Paulo Soledade fez para ele, acompanhada somente pelo piano de Graziela Madrigal. Curiosidade: esse arranjo lindo, delicado, profundo e misterioso é criação da própria Bethânia.

            O lado B começa com outro sucesso dos rádios na época, a canção ainda hoje famosa composta por Caetano Veloso de nome Tá Combinado. A letra versa sobre uma combinação prática de dois amantes que optam por tudo somente sexo e amizade. O autor, no entanto, pergunta: mas se o amor chegar (...) com todo seu tenebroso esplendor? Afinal, toda razão, toda palavra vale nada quando chega o amor. Como tudo que Caetano faz, a letra é inspiradíssima, mas talvez se precise falar mais sobre o melodista Caetano Veloso. Não é verdade que, como disse o também genial Hermeto Pascoal, Caetano seja um grande poeta mas um musiquinho. A melodia desta canção, como de várias outras do compositor, é simplesmente linda, num nível Tom Jobim de composição. Arranjo de Jaime Alem.

            O disco segue com mais Caetano Veloso, compositor da feliz Eu e Água, ijexá delicioso, novamente com arranjo de Alem e percussão de Djalma Corrêa e Carlinhos Brown (este último creditado no álbum inteiro como Brau). Sobre a harmonia e a forte percussão, a voz de Bethânia se mostra no auge, cantando sobre seu elemento: a água lava as mazelas do mundo e lava a minha alma. Essa faixa é também um grande sucesso até hoje.

            A próxima faixa é um medley: O Que os Olhos Não Veem, do compositor recifense Luís Bandeira, e Eu Sou a Outra, do compositor e jornalista carioca Ricardo Galeno (pseudônimo de Jorge Costa Nascimento), erroneamente grafado no encarte do álbum como “Roberto” Galeno. Em O Que os Olhos Não Veem o eu-lírico feminino da letra quer saber por onde anda o homem amado. Já em Eu Sou a Outra, a mulher apresenta o orgulho de ser a outra, já que, segundo a própria, tem muito mais classe do que quem não soube prender o marido. Eu Sou a Outra foi anteriormente gravada por Elza Soares, na época vivendo um conturbado casamento com o jogador de futebol Garrincha, que havia abandonado a mulher e filhos para viver com ela. Pegou muito mal e o casal foi muito perseguido por forças ocultas. O arranjo do medley, composto por baixo (Jorge Carvalho), piano (José Maria Rocha) e percussão (Djalma e Brown), é criação de Bethânia e do pianista. Na primeira canção, um samba de breque. Na segunda, somente o piano construindo um ao mesmo tempo pesado e delicado samba-canção.

            Onde Andarás, a próxima faixa deste álbum, é uma composição antiga de Caetano Veloso, com letra do poeta Ferreira Gullar! Foi primeiramente gravada pelo próprio Caetano no seu primeiro álbum solo (1968) de forma caricata, imitando Nelson Gonçalves. Aqui, no entanto, Bethânia leva a letra a sério, num arranjo sofisticado de piano (José Maria Rocha) e trompete (Márcio Montarroyos), criação de novo de Bethânia e do pianista. Na letra do poeta, o eu-lírico vaga pela rua na esperança talvez de que o acaso, por mero descaso, me leve a você.

            A penúltima faixa do álbum, O Ciúme, novamente composição de Caetano Veloso, tem a sonoridade mais “diferentona” do álbum, completamente arranjada e executada em sintetizadores pelo tecladista, compositor e engenheiro de som suíço Benoît Corboz. A faixa tem participação de Gal Costa e a letra trata o ciúme como algo que extrapola a mente e o corpo, se estendendo a toda a paisagem.

            Por fim, mas não menos importante, Noite de Cristal, também de Caetano, fecha o álbum alegre e esperançosamente, pedindo dias de outras cores, alegrias para mim, pra o meu amor e meus amores. Mas o disco não acaba antes de Bethânia cantar – sobre uma delicada “percussão de boca" de Brown – os versos da famosa e mais antiga Bandeira Branca, de Laércio Alves e Max Nunes, marcha-rancho que fez muito sucesso em 1970 na voz de Dalva de Oliveira. O arranjo dessa faixa é da americana Nancy Ypsilantis, sobre a qual há muito pouca informação na net. Nancy, aliás, é também produtora do álbum, o que provavelmente contribuiu para a qualidade e sonoridade diferenciada do disco.

            Conclusão: discaço! Não perca!




Comentários

  1. A crítica geralmente traduz a posição de quem tem acesso a uma redação ou seja, de uma só pessoa

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Eu amo esse LP
    E gostaria de saber pq Bethânia não regravou Verdades e Mentiras existente nesse LP pois as outras já foram regravadas quase todas.

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