A TRILOGIA RE
Uma trilogia de quatro. De 1972 a
1979, Gilberto Gil lançou três álbuns com títulos começando com a sílaba RE: Refazenda, Refavela e Ralce. Entre
eles, alguns álbuns ao vivo, um lendário com Jorge Ben e um RE bônus, ao vivo
com Rita Lee, o Refestança. Segundo o
próprio Gil, a escolha da sílaba não foi aleatória: o RE remete a uma REvisita
às suas origens musicais, um REencontro com seus mestres, uma REvisão de sua
própria obra.
Refazenda,
de 1975, é essencialmente um disco sertanejo, no sentido mais profundo da
palavra. Por isso, é quase um disco em parceria com o compositor e sanfoneiro
Dominguinhos. No lado A, inclusive, somente uma faixa não é autoral: Tenho Sede foi composta por Dominguinhos
e Anastácia. Todas as outras são de Gil: a adorável faixa Ela; Refazenda e sua
letra absolutamente hermética, basicamente um “fluxo de consciência” de raiz
freudiana, encantada por um baixo e uma orquestra de cordas precisos; Pai e Mãe, a linda canção em que Gil
explica o amor fraterno entre homens que se beijam como quem beija a um pai
(comumente e erroneamente associada ao homoerotismo); Jeca Total e sua letra que tenta transformar o Jeca Tatu do Monteiro
Lobato em algo um pouco mais civilizado, e a divertidíssima Essa É pra Tocar no Rádio, que nunca
toca no rádio e que curiosamente destoa do resto do álbum com seu ritmo funkeado e rápido à la James Brown. No lado
B do disco, o sertão começa a se esticar até o Japão, e a influência do budismo
nas letras começa a ficar bem clara, especialmente em Retiros Espirituais, O
Rouxinol, parceria com Jorge Mautner, e Meditação,
faixa quase experimental cheia de silêncios e pensamentos profundos. Além
dessas, Ê Povo Ê, numa gravação
estonteante com um arranjo quase barroco, e uma das canções mais belas já
produzidas no Brasil, a emocionante e sincerona Lamento Sertanejo, parceria com Dominguinhos, sobre o desconforto
que é pra quem veio “do mato” se adaptar à vida na cidade.
Realce, de 1979, é o meu álbum favorito da trilogia, não por suas qualidades musicais ou artísticas, mas porque é um álbum que povoou a minha infância mais tenra. Além disso, os arcos coloridos de purpurina, tanto na capa quanto no selo do disco, já naturalmente encantavam a criança viada que eu era. Realce é um ano só mais novo que eu. Se Refazenda e Refavela eram bússolas dialéticas, a primeira apontando ao mesmo tempo para o Japão e para o sertão do Brasil e a segunda apontando para a África e para as cidades grandes do Brasil, especialmente as periferias, Realce joga brilho e purpurina nos ouvidos do ouvinte, trazendo a música americana – e as outras músicas do mundo influenciadas por ela – e o sucesso da disco music para o toca-discos. Esse talvez tenha sido, da época, o mais bem sucedido álbum de Gil, com grandes vendas e muito sucesso, especialmente por causa de sua versão de No Woman, No Cry, aqui chamada de Não Chores Mais, sucesso de B. Vincent na voz de Bob Marley. Uma curiosidade sobre essa faixa é que muita gente desconfia de que ela tenha sido composta por Bob Marley mesmo e registrada no nome do amigo por conta de questões contratuais com gravadoras. O lado A começa com a exuberante Realce, segue com Sarará Miolo, passa por Superhomem – a Canção, a linda música sobre a importância de um homem reconhecer e cultivar o seu lado feminino (outra comumente confundida com uma canção queer) e termina com Tradição, essa com uma letra bem sexualmente ambígua: pode chamar essa de queer que, nesse caso, não é confusão não. O lado B, além de Não Chores Mais, a última faixa, traz também uma versão bem dançante de Marina, de Dorival Caymmi, um samba lindo estilo crescendo chamado Rebento, a famosíssima Toda Menina Baiana e a inspiradíssima (uma de minhas favoritas) Logunedé. Todas composições de Gil.
Ter problemas é o mesmo que não
Resolver tê-los é ter
Resolver ignorá-los é ter
Arrasou !
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