ELIS

 


            Como o artigo de hoje é sobre um dos muitos álbuns de Elis que se chamam Elis, resolvi chamá-lo assim também. Segundo o Wikipédia, este é o décimo álbum de estúdio de Elis Regina. Foi lançado em 1972 e é o meu favorito. O que chama a minha atenção para este álbum, além da capa linda, é a suavidade dele. Não tem faixas explosivas e épicas como Como Nossos Pais ou Agora Tá, mas é uma obra-prima de melodias lindas, arranjos doces, voz melodiosa e ritmos suaves, embora algumas de suas faixas tenham se tornado hits consideráveis. Não vou comentar todas porque isso vocês devem encontrar a rodo na internet, mas vou dar preferência àquelas sobre as quais acho que posso revelar algo novo, pelo menos para quem esteja começando a conhecê-lo melhor agora.

            Um amigo meu descobriu “a senha” para compreender a complicada letra de Bala com Bala, dos fantásticos João Bosco e Aldir Blanc: ela se passa dentro de um cinema! Primeiro, a sala de cinema cala, com seus frequentadores deliciando-se com pipoca e bala. O filme começa e é um corre-corre. O suor escorre, vem alguém de porre e o mocinho chegando. Nesta hora linda, loura, os problemas da vida lá fora são esquecidos. O filme continua, provavelmente um western. O tapa estala, tem bala com bala (tiroteio), as falas dos personagens e o galã se espalhando. A letra segue referindo-se às peripécias da fantasia na tela. Porém, quando a luz acende, é uma tristeza. Antes de a coragem se transformar em cansaço ao encarar a vida real, a última reflexão sobre a fita (que se trata de um filme em série, comum antigamente – você precisava voltar ao cinema na semana seguinte para ver a continuação da história) é que acaba sempre no melhor pedaço. Apesar de a letra não ser explosiva ou política, é uma delícia ver a voz de Elis dando conta desse jogo de palavras absurdo, difícil, rápido e divertido sobre o arranjo do seu futuro marido, o pianista César Camargo Mariano. Gênios.

            (Anuncio agora a criação do parágrafo-parêntese para contar pra vocês uma história curiosa contada pela filha dos dois, a também cantora Maria Rita, se não me engano em um programa Ensaio, aquele da TV Cultura, apresentado em off por Fernando Faro. Segundo ela, um dia ela pediu para seu pai ensiná-la a tocar piano, ao que ele respondeu que não podia porque nunca tinha aprendido. A história diz que a família havia adquirido (ou ganhado) um piano, no qual César, ainda criança e sem nunca ter estudado música, simplesmente sentou e tocou. O pai dele, portanto avô de Maria Rita, ao ver essa cena, teve um ataque do coração e foi hospitalizado. Eu sei, eu também tenho dificuldade em acreditar nessa história porque eu tenho um piano, tentei aprender e é muito difícil. Mas ela não é única: há muitas histórias de pianistas que nunca estudaram piano, entre eles o cantor, compositor e pianista Ivan Lins.)

            Mucuripe já seria uma joia rara somente pelo fato de ser uma parceria entre Belchior e Fagner. A história diz que essa canção tem duas versões, uma hoje desconhecida do público, que Belchior cantava informalmente ao vivo, e outra com uma melodia diferente criada por Fagner usando a mesma letra de Belchior. Este simplesmente achou a música do colega melhor e parou de cantar a sua. Essa versão de Elis é precedida pela de Fagner, embora do mesmo ano, lançada no lado B de um compacto produzido pelo jornal O Pasquim numa série chamada Disco de Bolso. Neste, Caetano Veloso canta A Volta da Asa Branca, de Luiz Gonzaga, no lado A, e “apresenta” o novato amigo cearense Fagner no lado B. Nenhum dos dois imaginava a treta que teriam um com o outro no futuro, mas isso é outra história.

            A gravação de Vida de Bailarina talvez seja a maior homenagem que Elis prestou à sua musa inspiradora, a cantora Ângela Maria, de quem sempre foi fã confessa, admitindo, inclusive, que começou sua carreira imitando ela. A letra da música, que fez sucesso com a Sapoti, apelido de Ângela, conta a velha história do palhaço triste, porém trocando o personagem pela bailarina, que é forçada a enganar, não vivendo pra dançar, mas dançando pra viver.

            Cais, a linda e emocionante canção de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, é, segundo Milton, a única canção que ele compôs não pensando na voz de Elis para gravar, mas sim em Nana Caymmi, apesar de Elis ter gravado primeiro. Cais é sobre a vaia que Nana tomou em 1966, no Maracanãzinho, cantando Saveiros, de Dori Caymmi e Nelson Motta. Há pouco tempo, David Bowie, o cantor inglês, foi acusado de plagiá-la em sua canção Sue (or in a Seaseon of Crime). E então dois cavalheiros vieram à tona: Bowie disse que conhecia a obra e a importância de Milton para a música mundial e que, portanto, talvez tivesse inconscientemente se apropriado do trecho citado. Milton prontamente disse que era fã de David Bowie e que jamais consideraria que ele pudesse tê-lo plagiado.

            Por fim, gostaria de destacar a linda canção Boa Noite, Amor, triste triste, sobre um beijo que ficou no desejo. Quem nunca? Elis mostra que não é só na emissão forte que ela ganha os agudos e a técnica perfeita do seu canto, mas também nos pianos (execução de uma nota com menos volume de som, particularmente notável quando de uma nota aguda). A canção foi composta pelo pianista José Maria de Abreu e pelo letrista Francisco Matoso e fez sucesso na primeira metade do século passado na voz de Francisco Alves. Uma valsa delicada e linda como esta só podia mesmo ter sido composta por um pianista.

            Poucas vezes uma capa de disco combinou tanto com seu conteúdo musical. Os dois suaves porém verdadeiros. Arte de verdade. Beleza e paixão. Doçura e profundidade. Técnica e emoção. César Camargo Mariano. Elis Regina.



Comentários

  1. Tenho e-mail CD. Mucuripe é uma das coisas mais lindas que eu já ouvi da Elis. Na verdade tudo que ela cantava sempre foi muito bom..

    ResponderExcluir
  2. Em Bala Com Bala o verso "o urubu sai voando", é uma referência a Condor Filmes, uma das maiores distribuidoras de filmes da época, cujo apresentação era um condor (o urubu da letra) voando.

    ResponderExcluir
  3. Esse disco é demais. Bala com bala é uma obra-prima. Letra inspiradíssima do Aldir, música belíssima do João, canto perfeito da Elis, arranjo estupendo do César (que aprendeu a amar cinema com o JohnnyAlf) e execução estonteante dos brilhantes músicos. Quanto à história do piano, César o recebeu quando fez 13 anos e, acabada a montagem de algo que ele pensou ser um armário, sentou-se e tocou. A mãe saiu da cozinha, o afinador voltou para a sala e o pai infartou, ficando 45 dias no hospital. Depois contou ao filho que, por ser espírita, acreditava que o César tivesse incorporado algum pianista consagrado por tocar daquele jeito. Essa e mais histórias estão no llvro de memórias do César: "Solo".

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

GILBERTO GIL AO VIVO

 O DISCO DO SHOW DA PRISÃO

FILHO DA MÃE